Ren tem 12 anos e vive no orfanato de Santo António desde que se lembra. Não tem uma mão, e não sabe como a perdeu, assim como não sabe nada sobre o seu passado e como foi parar ali. Tal como todos os seus colegas do orfanato, sonha em encontrar uma família para não ter de ir para o exército quando atingir a maioridade. Respondendo às suas preces, um dia, aparece Benjamin Nap, que alega ser seu irmão. Conta uma história rebuscada sobre o modo como ele perdeu a mão e sobre a razão de ele ali estar. E o prior, agradecido por ter menos uma boca para alimentar, liberta Ren para ir com aquele desconhecido.

O miúdo, confuso, lida com sentimentos díspares. Por um lado, está triste por deixar os seus amigos para trás, e a vida que sempre conheceu e onde está confortável. No entanto, sente que esta é a oportunidade de se conhecer a si próprio, a sua história, a sua família. No entanto, à medida que se afasta do orfanato com Benjamin, muitas coisas estranhas vão acontecendo e teme que tenha sido apanhado numa teia de mentiras onde é apenas um peão.

Tenho mixed feelings sobre este livro. Acabei de o ler, sim, foi interessante o suficiente para o acabar. Mas fiquei com demasiadas perguntas por responder. Mesmo em relação ao ambiente, sabe-se que se passa na Nova Inglaterra, mas mais nada. Falta um certo contexto histórico e social para percebermos alguns pontos, até mesmo comportamentais. Há também algumas personagens que aparecem para salvar o dia, como que por magia, e não chegamos a saber nada sobre elas. Para um leitor mais lógico, como eu, deixa algo a desejar.

Uma coisa que me irritou profundamente foram os comentários de capa. Sabemos que são um isco, mas a comparação com Charles Dickens e Harry Potter é o maior de todos. É que não tem nada a ver, para além do facto de ser uma aventura e, também, não fossem os episódios de violência, catalogaria este livro como infanto-juvenil.

Não é de todo o meu género de literatura, mas teve suspense suficiente para me agarrar e a personagem principal, Ren, é realmente cativante.

O Bom Ladrão
De: Hannah Tinti
Ano: 2008
Editora: Edições Asa
Páginas: 288

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.

Alexey Ivanovitch é o jovem perceptor dos filhos de um general russo que se encontra com bastantes dívidas. O general espera casar brevemente e receber uma herança para continuar a prosperar. Tem uma sobrinha, Polina, pela qual Alexey está loucamente apaixonado, mas não é o único - vários homens ricos pretendem desposá-la, o que também poderia representar um alívio financeiro para o general.

O general, Alexey e a restante família e amigos próximos encontram-se na Alemanha, numa área que fica terrivelmente perto de casinos. Terrivelmente, porque Alexey já teve problemas com o jogo no passado e receia perder a cabeça e apostar o pouco que tem na roleta. Quando Polina lhe pede para arriscar uma considerável soma no jogo para poder pagar dívidas, Alexey luta com sentimentos contraditórios - o bichinho do jogo que vive em si quer arriscar, mas teme perder, e ainda por cima não se trata do seu dinheiro.

A insistência da sua amada acaba por ganhar e Alexey vê-se novamente na mesa de jogo, e a sentir o que outrora sentiu - uma ganância que o faz querer mais e mais, uma cegueira que o impede de ver quando deve parar, um isolamento do que se passa à sua volta e das vozes que o aconselham, uma loucura inexplicável e uma desilusão tremenda quando as coisas não correm de feição.

Este é um clássico incontornável da literatura, mas não é o meu livro preferido de Fyodor Dostoyevsky. As partes da narrativa sobre o jogo são soberbas, e para isso contribuíu o facto de o próprio autor ter sido viciado no jogo. Aliás, este livro foi escrito com o objectivo de pagar precisamente dívidas de jogo. Ninguém melhor para descrever o que sente um jogador e para nos transmitir a alienação, a alucinação e o alheamento relacionados com a experiência.

No entanto, na minha opinião, a restante narrativa foi vítima desta pressa do autor, visto que se debruça de um modo desnecessário sobre outras temáticas, nomeadamente a sua paixão por Polina, que nunca chegamos a perceber muito bem e porque é que tem tanto tempo de antena; ou a existência de outros personagens que não chegam a contribuir significativamente para a história.

Há também momentos mais satíricos, cómicos e de boa disposição, sendo um dos pontos altos, para mim, o aparecimento da velha senhora 'generala' a quem todos chamam "Avó", que tem uma grande fortuna e estão todos a contar com a mesma quando ela morrer, e no entanto ela "decide" não morrer tão cedo e, para além do mais, vicia-se também ela na roleta. É engraçado assistir à crescente preocupação dos seus descendentes à medida que o dinheiro vai voando na mesa de jogo.

Um livro que é acima de tudo um olhar sobre a auto-destruição e sobre a maneira como o vício pode corromper uma alma, que teve inúmeras adaptações, seja para cinema, televisão, rádio, entre outras.

O Jogador
De: Fyodor Dostoyevsky
Ano: 1866
Páginas: 168
Editora: Editorial Presença

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.

Joaquim Heliodoro é um homem único. Usa um fato completo desde tenra idade, e tem hábitos e costumes que já não se usam. Com uma cultura acima da média, é um apaixonado por História e por compreender tudo o que pode. As suas habilidades sociais não são nada por aí além, e manteve-se, desde sempre, solteiro e com poucos ou nenhuns amigos, parecendo extremamente deslocado onde quer que vá.

Quando ganha uma soma avultada de dinheiro, Joaquim não está com meias medidas e compra um palacete acastelado com o objectivo de o transformar em hotel. Trabalhando com um arquitecto, os dois conseguem pôr o projecto de pé apesar das inúmeras desavenças - afinal, Joaquim é um homem à antiga com gostos difíceis de realizar e de rebater.

Torna-se então um homem orgulhoso da sua propriedade, que gosta de apreciar diariamente aquele local mágico que sempre admirou toda a sua vida e que muita curiosidade lhe suscitou. As texturas antigas, balaustradas e colunas, os frondosos jardins, os balcões com vistas magníficas, a biblioteca, os recantos, a mobília de época que conseguiu reunir, os grandes espelhos. E como pessoa única que é, também é esquisito com os seus hóspedes, mantendo os típicos turistas bem longe, apelando à vinda daqueles que sabem apreciar a arquitectura, a beleza e a tranquilidade.

A leitura não é fácil - o preciosismo do autor, as suas entusiásticas descrições devido à exploração histórica minuciosa sobre o local, fazem com que existam grandes blocos de informação que, sem a devida pré-disposição, poderemos não apreciar. É o meu caso, que tenho de estar com um certo mindset, e como tal o início do livro foi difícil de superar. Depois, alguns factos que foram introduzidos viraram o rumo das coisas.

Um deles foi o surgimento de uma aura pornográfica, que pode parecer tema que não se arruma aqui, mas que nos parece natural após a estranheza inicial. Joaquim Heliodoro é um homem com taras que enlouquece com o voyerismo, e o entrosamento entre a sua capacidade de observação geral com as descobertas pessoais que vamos fazendo sobre ele, misturadas com alguns segredos que nos vão sendo revelados sobre portas e passagens secretas que permitem que dê asas ao seu fetiche, vão fazendo com que compreendamos este homem e dão origem a situações engraçadas e surreais que não imaginávamos ao início. Depois, duas mulheres importantes vão tomando também o seu espaço na narrativa - Margareta, uma hóspede italiana sensual que lhe desperta uma sede adormecida; e Manuela, a gerente, intrometida, uma mulher mais jovem que nunca pensou poder despertar-lhe interesse.

É uma leitura muito interessante, de um autor que talvez conheçam de crónicas do Público ou da apresentação de alguns programas documentais na televisão, infelizmente falecido em 2016.

Hotel
De: Paulo Varela Gomes
Ano: 2014
Editora: Tinta da China
Páginas: 320

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.
Vá, esta livraria não tem culpa quando os autocolantes promocionais que tem se ajustam completamente ao assunto... 



;) 



O universo sombrio de Edgar Allan Poe está a ser recriado num cenário perfeito para o efeito - a Quinta da Regaleira, em Sintra. O espetáculo ocorre ao ar live às sextas e sábados à meia-noite até 18 de agosto.

Parece ser um espetáculo muito interessante, num local mítico que não podia ser mais adequado ao autor e que promete desvendar muitos mistérios e ter muita interação com o público, que será decisiva para o desenrolar da improvisação.

O evento, denominado Nocturnus, tem o preço de 10€, mas acedendo à bilheteira online já não existem bilhetes disponíveis. Talvez os interessados ainda consigam comprar no local. Vale a pena tentar!


Tertuliano Máximo Afonso é um professor de História solteiro, que vive sozinho, não é muito dado a socializações e tem uma certa mágoa por carregar um nome tão distintivo. Um dia, é-lhe recomendado um filme. Ele, que não é nada dado à magia do cinema, aceita a recomendação, para desafiar o marasmo em que se encontra.

Qual não é o seu espanto quando repara que um dos figurantes da película é a sua cópia chapada... Espantado e temeroso, decide-se a alugar vários filmes da mesma produtora de forma a encontrar novamente aquele rosto que parece o seu reflexo absoluto. Conforme vai reencontrando aquele homem noutros filmes, mais nervoso fica, porque não é apenas a cara - têm a mesma voz, as mesmas cicatrizes e no mesmo sítio, os mesmos sinais - e, mais do que qualquer outra coisa, a situação torna-se assustadora e é premente para Tertuliano encontrá-lo, confrontá-lo, dizer-lhe que no mundo só há espaço para um de si.

Esta é a premissa que desencadeia uma data de eventos que têm tanto de surrealista como de engraçado ou pesaroso, culminando no inesperado. Uma história que se bebe, daquelas que é impossível parar de ler. Tertuliano é uma personagem tão bem delineada, tão humana, que transporta tanto por dentro daquilo que não dizemos, que tão cedo não o irei esquecer.

É um romance fantástico, com um sentido de humor refinado, com aquela narrativa que imita a oralidade bem característica de Saramago e que torna a cadência da acção inimitável. Embora o tema dos "duplos" ou "sósias" não ser inovador e de já ter sido explorado por inúmeros e grandes escritores, garanto aos futuros leitores que nunca leram uma história assim.

O livro foi adaptado para o cinema (com o nome original Enemy) e lamentavelmente ainda não vi, mas verei muito em breve por duas razões - estou imensamente curiosa para ver a adaptação em si, que não deve ter sido nada fácil; e, porque Jake Gyllenhaal.

O Homem Duplicado
De: José Saramago
Ano: 2002
Editora: Porto Editora
Páginas: 336

A nossa pontuação: ★★★★☆
Disponível no site Wook.

Jonathan Harker está na Transilvânia por motivos profissionais, para lidar com a compra de uma casa em Londres por parte do misterioso Conde Drácula. É recebido num portentoso castelo situado numa lindíssima área florestal, e o anfitrião, apesar de ter estranhos hábitos, aparenta cordialidade. Conforme os dias passam, Jonathan vai-se apercebendo de que nunca viu o conde comer, que nunca aparece de dia, que parece esfumar-se de um momento para o outro, e o caldo entorna definitivamente quando não o vê num reflexo de um espelho e depois testemunha a sua descida do castelo pela parte de fora, com uma facilidade tal que parecia uma aranha.

Sem saber se algo se passa ou se a sua mente lhe está a pregar partidas, Jonathan, ao tentar sair, percebe que, mais do que um prestador de um serviço, é um prisioneiro. O pânico apodera-se dele quando o conde o obriga a escrever cartas para o sócio e para a noiva com conteúdo adulterado.

Já em Inglaterra, a sua noiva Mina começa a estranhar primeiro o conteúdo das cartas que recebe, e depois, a falta de notícias por parte de Jonathan. Ainda para mais, pernoita na casa da sua melhor amiga Lisa, e esta, sofredora de sonambulismo, desaparece numa noite. Mina procurou a amiga por todo o lado e ao longe conseguiu vislumbrar um vulto branco, amparado por uma outra figura de negro, que desapareceu com a sua aproximação. A partir dessa noite, Lisa nunca mais foi a mesma pessoa, adoeceu gravemente e as pequenas feridas no seu pescoço não auguravam nada de bom.

Este é o ponto de partida e o facto que faz com que ilustres personagens se juntem para descobrir a verdade e que tudo façam para acabar com uma ameaça que pode afectar o mundo inteiro.

Apesar de ficcional, a narrativa faz-se apenas e só com os registos dos diários das personagens e com alguns apontamentos de notícias de jornais, o que não é, de todo, uma forma fácil de escrever, e que foi concerteza um grande marco no séc. XIX. Fazer com que todos os factos batam certo e que sigam uma linha temporal a partir de relatos escritos em forma de diário é um feito só ao alcance dos génios. A leitura, como tal, não é propriamente fácil. É um livro maçudo e temos de nos habituar a ler imensas vozes, que é como ter vários narradores para uma história só.

Não há como contornar também o facto de aqui, neste livro fantástico, ter nascido o pai de todos os vampiros. Uma personagem como há poucas, que tem sobrevivido através dos séculos e que marcou a cultura popular como poucas. Com uma caracterização baseada em lendas e folcrores, reúne, de forma consensual, as características chave destas criaturas mitológicas que, infelizmente nas últimas décadas, têm vindo a ser deturpadas de tal forma que já em nada se parecem com as crenças seculares.

Um clássico incontornável obrigatório para os fãs de literatura de todos os géneros, que deu origem a inúmeras adaptações em várias vertentes artísticas. No cinema, perde-se a conta aos filmes que directa e indirectamente se basearam nesta história, mas destacam-se os incontornáveis, míticos, Nosferatu (1922) e Dracula (1931).

Drácula
De: Bram Stoker
Ano: 1897
Editora: Publicações Europa-América
Páginas: 424

A nossa pontuação: ★★★★☆
Disponível no site Wook.
A iniciativa chama-se Flybraries e chegou aos voos nacionais. A companhia aérea Easyjet "equipou" os seus aviões com 17.500 cópias de livros infantis, traduzidos para 7 idiomas, incluindo português. Uma verdadeira biblioteca voadora que tanto os miúdos como os pais vão decerto gostar.

Entre os livros disponíveis podemos encontrar Alice no País das Maravilhas, O Livro da Selva, Peter Pan, entre outros. Portanto, coisas que muitos adultos, como eu, não se importariam de ler ou reler também...

Uma iniciativa de louvar, visto todos sabermos a importância da leitura. Para além disso, sendo um espaço fechado e tendo as crianças de ocupar o tempo, pegarem num livro para se entreterem poderá fazer toda a diferença, e poderá nascer um novo hábito naquelas que são mais resistentes à leitura. De acordo com os mais recentes resultados do PIRLS, os alunos portugueses do 4º ano pioraram o seu rendimento na leitura desde 2011 e estão abaixo da média europeia.

Muitos parabéns à Easyjet! Podem conhecer mais dados e a iniciativa aqui.


Linnet Ridgeway é uma jovem que aparentemente tem tudo: é bonita, sofisticada, elegante, inteligente, tem olho para o negócio, é pretendida por inúmeros homens, e as mulheres normalmente rendem-se à sua simpatia, aura genuína e charme. Para além disso, é herdeira de uma das maiores fortunas do país e, prestes a atingir a maioridade, pensa em casar.

Quis o destino que se apaixonasse justamente pelo namorado da melhor amiga, e é assim que faz uma inimiga. Linnet e Simon acabam por casar, para desgosto da sua amiga, Jacqueline, que passa a persegui-los para todo o lado, de forma a conseguir estragar o tempo de qualidade do jovem casal.

A situação vai tomando proporções perigosas e, sem medo de cair no ridículo, Jacqueline consegue saber onde o casal vai passar a lua-de-mel e, sem vergonha, segue-os para o Egipto. Acontece que Hercule Poirot está de férias e segue nesse mesmo barco, tornando-se um pouco o confidente da perturbada jovem, que tenta acalmar o melhor que pode, mas a sua mágoa é enorme e o desejo de vingança maior ainda.

Numa noite em que os humores se exaltaram e em que Jacqueline tinha bebido demais, Linnet aparece morta. É o choque para os passageiros daquele cruzeiro. A resposta para o crime parece óbvia para alguns, mas é claro que nada é fácil nem o que parece à primeira vista.

Agatha Christie tem aqui uma das suas mais célebres histórias, que nos agarram não só pelo fabuloso mistério desenvolvido e pelas voltas e reviravoltas na narrativa, mas também pelas fantásticas personagens a que dá corpo. Todos os que se encontram naquele barco são suspeitos, e todas as personagens são peculiares, particulares, com características únicas tão bem delineadas que conseguimos imaginá-las perfeitamente.

O leitor é sabiamente levado a desconfiar das várias versões contadas, desenvolvendo o espírito crítico, integrando também um pouco o papel de investigador, tão bem endereçado ao nosso bem conhecido Poirot.

O livro foi adaptado ao cinema em 1978, num muito conhecido clássico que conta com os talentos de Bette Davis, Mia Farrow ou Maggie Smith, apenas nomeando alguns; e está a ser desenvolvida nova versão que estreará nos cinemas em 2019, continuando o trabalho de Um Crime no Expresso Oriente, saído o ano passado, pelo mesmo realizador, Kenneth Branagh.

Morte no Nilo
De: Agatha Christie
Ano: 1937
Editora: Edições Asa
Páginas: 270

A nossa pontuação: ★★★★☆
Disponível no site Wook.


É preciso ser-se um ser humano do mais humano que há para escrever um livro assim. A redundância é propositada para enfatizar a pessoa que o Rodrigo Guedes de Carvalho é - ele consegue engrandecer o quotidiano, a crueza das palavras, o negro e o vazio que habitam cá dentro, recorrendo a uma linguagem visceral, sem filtro, que obedece ao ritmo certo, a uma cadência natural, que transporta uma angústia adormecida.

As histórias das várias personagens alternam-se entre capítulos. Elas têm algo em comum mas não sabem. Acompanhamos de perto especialmente duas personagens: Maria Luísa, uma rapariga que é demasiado bonita para o mundo em que vive, que desperta olhares que não deseja onde quer que vá. Já teve tantos problemas por ser assim e não consegue esconder, mesmo com as piores e mais largas roupas, o seu corpo voluptuoso. É recatada, tem poucos amigos (só um, na verdade), o paradeiro do pai é desconhecido e a mãe morreu há muitos anos. Um dia, acorda para ver a falecida mãe na sua sala.

Luís Gustavo é um enfermeiro, também ele recatado e de poucas conversas. É observador, atento e facilmente cria laços com os pacientes do hospital. A namorada deixou-o, a mãe abandonou-o à nascença, o pai era alcoólico e acabou por falecer, e a pessoa mais importante para si, e que o criou, foi o seu avô, falecido há uns anos. Um dia, Luís Gustavo vê o falecido avô na rua.

Estas e as outras personagens, maravilhosamente construídas, vão vivendo as suas vidas paralelamente enquanto nós vamos torcendo para que esbarrem uns nos outros, para que partilhem a sua solidão. Apetece gritar-lhes que não estão sozinhas, que há outros a passar pelo mesmo, para virarem naquela esquina, subirem as escadas à direita, que está ali uma pessoa que o vai compreender e que nunca o vai desiludir...

Mas este desejo de leitor pode não corresponder àquilo que realmente acontece. Têm de ler. Têm de ler porque é um dos livros mais belos que já li, porque é corajoso e explora temas complicados como a violação, a depressão, a violência ou a homosexualidade. Ou como nos vendemos por tão pouco, ou como a inveja surge de maneiras que nem se podem dizer em voz alta, ou como nos chegamos a desprezar antes de todos os outros o fazerem. E no entanto, apesar disto tudo, a aura do livro é positiva e mágica. Uma aptidão rara por parte do autor. Uma leitura não só recomendada, mas que se impõe.

O Pianista de Hotel
De: Rodrigo Guedes de Carvalho
Ano: 2017
Editora: Dom Quixote
Páginas: 480

A nossa pontuação: ★★★★★
Disponível no site Wook.

A ação do livro decorre toda no espaço de um dia. Assistimos a vários eventos que se vão passando ao longo desse dia, aparentemente sem relação alguma entre si.

Num quarto de hotel, um homem de família trai a esposa com uma mulher mais jovem, sem saber como é que aquela rapariga encantadora se interessou tanto pela sua vida e se sentiu tentada com o seu físico que já não é o de outrora. Ao mesmo tempo, vemos que um criminoso anda a preparar alguma, com esquemas para desviar a atenção da polícia, que o tem debaixo de olho, e realizando contactos com os membros da sua equipa. Um bem sucedido homem de negócios anda pelo beicinho por uma mulher casada e tem uma reunião misteriosa.

Cada capítulo vai saltando entre estas e outras histórias, que se vão desenvolvendo e aprofundando, suscitando a nossa curiosidade. Como é de imaginar, o ritmo é elevado, já que o livro é curto e o leitor vê-se deserto para saber o que é que uma coisa tem a ver com a outra. Na minha opinião, as ligações surgem tarde demais. Anda-se um pouco perdido, e com tanta coisa a acontecer, vemo-nos obrigados a ler o mais possível de seguida ou somos obrigados a passar os olhos na diagonal para relembrar o que ficou para trás, não vá algum pormenor destas ligações ter sido esquecido.

Ken Follett é mestre nisto de nos manter atentos até ao fim e as suas narrativas têm sido sempre interessantes para mim, mas temo que este seja o livro do autor de que menos gostei. Tantos saltos na narrativa fizeram com que as personagens, que são imensas, não fossem exploradas por aí além, e pelo menos eu não consegui criar conexão com elas, que normalmente é condição essencial para criar uma ligação emocional.

Não deixa de ser um bom livro, com muito mistério, e que nos expõe o mundo financeiro, a corrupção, os esquemas que se realizam por trás do pano, a importância dos contactos certos nos negócios; mas também que mesmo quando pensamos que um plano pode ser perfeito, e que vai tudo correr bem, tudo pode dar para o torto...

O Preço do Dinheiro
De: Ken Follett
Ano: 1977
Editora: 11 x 17
Páginas: 320

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.

No séc. XVI, o rei D. João III presenteou o seu primo, o arquiduque Maximiliano da Áustria, com nada mais nada menos do que um elefante. O pobre coitado vivia acomodado em Belém há dois anos e o rei achou que seria uma oferta de casamento singular. Ora isto aconteceu mesmo, e embora não existam muitos relatos devido à época distante, há alguns, e o resto aprimorou José Saramago com a sua imaginação.

Ora, o elefante Salomão, o seu conarca (tratador) Subhro, vários elementos da segurança do reino, ajudantes e carros de bois que transportavam água e alimento para o elefante compunham a comitiva. Está visto que naquela altura os meios de transportes eram parcos e não houve outro remédio senão irem a pé, de Lisboa a Viena, com paragem em Espanha onde se encontrava de momento o arquiduque, que se apoderou das operações a partir daí.

O livro trata disto mesmo - da viagem do elefante do ponto A, o nosso país, ao ponto B, Viena, mas é claro que nada é linear em Saramago. Deparamo-nos a todo o momento com as mais deliciosas e cómicas situações, vivemos momentos de camaradagem, aprendizagem, comovemo-nos, ao mesmo tempo em que são realizadas enormes críticas, como à religião ou às diferenças entre estratos sociais.

Salomão e Subhro são daquelas personagens inesquecíveis, que ficam guardadas cá dentro, para sempre. Um, porque é um paquiderme que veio da Índia para percorrer as estradas da Europa, enfrentando as intempéries e a estupidez dos humanos; o outro porque é a pessoa que mais compreende o primeiro, e que vai também compreendendo cada vez mais o modo de vida ocidental e como dar a volta aos elementos da comitiva real, gerando também situações muito engraçadas.

É um livro que até tem uma aura mais light que a maioria dos romances de Saramago, mas nem por isso deixa de ter uma moral bem triste, que, tal como assumiu o autor em entrevista, é uma metáfora da vida humana.

Foi a primeira vez que um livro de Saramago foi adaptado para Banda Desenhada em Portugal, por João Amaral, de onde faz parte a imagem em cima.

A Viagem do Elefante
De: José Saramago
Ano: 2008
Editora: Porto Editora
Páginas: 216

A nossa pontuação: ★★★★☆
Disponível no site Wook.

Roubaud e Séverine são um casal normal, apesar da diferença de idades - ele é mais velho, e não sabe como é que a jovem de 25 anos que, apesar de não ser uma beldade, tem algo de magnético nos seus olhos azuis, se enamorou por ele. Até ao dia em que Roubaud descobre algo perverso sobre o passado da mulher e é tomado por um ciúme doentio. Sem se conseguir controlar, Roubaud mata um homem do passado de Séverine e obriga-a a participar.

O crime, perpetuado num comboio, foi testemunhado pelo jovem Jacques, por acaso colega de Roubaud na companhia dos caminhos de ferro. Com a velocidade a que seguia a locomotiva, Jacques não foi capaz de descortinar caras mas viu pormenores capazes de enterrar o colega. Roubaud quase que mete o jovem debaixo da sua asa e faz com que a simpatia de Jacques pela sua "inocente" e "terna" mulher cresça para que este se cale.

Jacques tem não só de se preocupar com uma investigação que o tem como principal testemunha, como também por um sentimento crescente por Séverine, que é mútuo e que os vai levar numa outra novela; e ainda com algo que cresce dentro dele há muito tempo e que nunca se atreveu a contar a ninguém - uma vontade incontrolável de matar mulheres, de lhes enfiar a lâmica nos seus pescoços macios e ver a vida escorrer-lhes devagar.

Muitas mais personagens entram em cena nesta trama complexa, cheia de pormenores, descrições exaustivas e que, como ainda por cima é um clássico com uma linguagem coloquial própria da época, torna a leitura num processo nada fácil.

Não deixa de ser uma leitura recomendada que, tal como o título indica, nos apresenta a besta humana, não uma só, mas um conjunto delas, uma vez que ela habita em cada um de nós. Pode estar escondida, mas ela vive, esperando a sua oportunidade. Pode nunca chegar, mas mais dia menos dia manifesta-se em alguém. E é bonito ver uma quantidade de bestas a acordar ao mesmo tempo.

O livro foi adaptado para o cinema algumas vezes, sendo a mais célebre das adaptações a realizada por Jean Renoir em 1938. Resta-me fazer um reparo às edições portuguesas, que traduziram o nome do autor de Émile para Emílio... A sério?

A Besta Humana
De: Émile Zola
Ano: 1890
Editora: Publicações Europa-América
Páginas: 328

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.
Estamos com a Manta de Histórias. Isto não há coisa de ter demasiados livros. Isso não existe. O problema é que não há estantes suficientes. Ou salas, ou casas...



A acção tem lugar no Cairo. A trama gira em volta de um assassínino de uma bonita e jovem prostituta numa casa de passe. O chefe da polícia, Nour El Dine, tem três suspeitos em mente, frequentadores assíduos da casa.

São eles Gohar, um ex-professor que agora é mendigo por opção. Respeitado por todos devido aos seus sábios conselhos,e inteligência e sagacidade, é basicamente um filósofo de rua que apenas sofre quando não tem haxixe. Ieguene é quem lhe arranja a droga, e é tão feio que quase todos lhe têm medo. Gohar é a sua pessoa preferida à face da Terra, tem-lhe uma admiração que só vista. Vive numa pobreza extrema, não tendo onde cair morto. El Kordi é um funcionário baixo do Estado, constantemente atacado pela preguiça e que vive cortejando bonitas mulheres, prometendo-lhes mundos e fundos que não pode oferecer.

A narrativa gira em volta destes três homens, apresentando-nos muitas mais personagens bastante interessantes, como o mendigo homem-tronco, que é só um tronco com braços mas que, pelos vistos, atrai mulheres como um íman. Que mulher não ficaria encantada por ter o melhor dos mendigos ao lado, com trocos diários garantidos? Para além disso a sua performance sexual parece acima da média...

O autor, Albert Cossery, viveu ele próprio como um "mendigo altivo" e decerto muito se inspirou na sua realidade. Apesar de ter nascido no Egipto, viveu mais de 60 anos num quarto de hotel em Paris praticamente sem objectos, onde morreu. Publicou os livros suficientes apenas para sobreviver - um livro de 8 em 8 anos, uma linha por semana, como reza a história da sua biografia.

É de facto uma forma curiosa de se viver, dedicada à indolência e ao prazer da preguiça, que apregoava. E vemos muito disto em "Mendigos e Altivos". Gostei bastante da obra, talvez a linguagem culturalmente muito própria não permitiu que me embrenhasse totalmente mas é um livro cheio de humor negro e situações incrivelmente cómicas que vale a pena dar uma espreitadela.

Mendigos e Altivos
De: Albert Cossery
Ano: 1955
Editora: Antígona
Páginas: 264

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.

Na África do Sul pós-apartheid, David Lurie é um professor universitário de 52 anos que vive calmamente uma vida conturbada, se é que isto é possível. Explicando um pouco, ele vive em paz consigo próprio apesar de não levar uma vida propriamente normal - com dois casamentos falhados, afastado da filha, é doido por mulheres e encontra-se semanalmente com uma prostituta que lhe acalma os desvarios do corpo e da mente. No entanto, esta relação profissional e pacífica termina quando David leva as coisas para o lado pessoal.

Com as ânsias da carne por responder, a sua atenção centra-se numa aluna. A sua parca idade, o ar angelical e virginal, o seu corpo firme, apanham-no de supetão e faz a sua investida. Ela não diz que não, e começam uma relação de alguma familiaridade e intermitência, interrompida quando o ex-namorado da moça aparece, ameaçando-o. Este convence a rapariga a apresentar queixa contra o professor, e o escândalo da relação assombra a comunidade.

A carreira de David cai por terra, sem no entanto abalar a sua confiança - ele nunca dá parte de fraco, nunca se dá como culpado, não mostra qualquer remorso, porque afinal, numa relação consentida entre adultos, a única coisa que poderá fazê-lo sentir-se menos bem consigo próprio é a beatitude da relação professor-aluna...

Escorraçado, decide passar uns tempos com a filha, na quinta onde ela vive isolada. Considera que é uma oportunidade de se aproximar dela enquanto limpa a cabeça, deixa que a sua reputação seja olvidada na cidade e para esquecer o peso da idade que começa a sentir. Lucy é uma mulher forte e independente, que vive do que ganha numa banca no mercado e no canil na quinta. Recentemente separada da mulher, vive sozinha em casa, apenas rodeada de alguns vizinhos e do sócio.

A presença de David na casa dela não é um mar de rosas. A relação de pai e filha nunca foi muito próxima e íntima, mas ambos fazem um esforço para mitigar as tristezas de que são vítimas e para terem a paciência de se aturarem. No entanto, as suas vidas vão ser como que atropeladas por um evento que os mudará para sempre. Algo tão terrível que vai mostrar que uma desgraça nunca vem só, que as coisas podem sempre piorar, e que mesmo quando já nos sentimos no fundo do poço é ainda possível descer mais. E, se o leitor pensasse que uma desgraça os uniria, desengane-se. Com visões distintas sobre o que se passou, as suas almas nunca estiveram tão distantes na compreensão mútua.

É um livro intenso nas temáticas mas escrito de forma tão genial que tudo flui e é natural. A aura vai ficando cada vez mais negra - o autor não nos deixa espaço para pousarmos o livro, fazer uma pausa, e fingir que nunca o lemos é impossível. É marcante, daquelas leituras que não esquecemos nem que vivamos 100 anos.

Num livro relativamente curto somos confrontados com muitas coisas que tememos e que quase nos sufocam, como a vergonha intensa, a humilhação ou a desonra, e até mesmo a forma como tratamos os animais. Não é por acaso que J.M. Coetzee ganhou o Nobel em 2003. Esta capacidade de nos chocar num curto espaço físico e com uma história de base simples é brutal. Como um choque frontal contra um muro a 120 km/hora. Completamente incisivo.

Desgraça
De: J. M. Coetzee
Ano: 1999
Editora: BIS
Páginas: 240

A nossa pontuação: ★★★★☆
Disponível no site Wook.
Conhecimento é poder! E é importante saber, e ler muito, antes de se marcarem para sempre com uma gralha, e ainda por cima, feia como tudo :P


Sim, Lisboa não precisa de mais Tuk-tuk's... Mas quando se trata de uma biblioteca que percorre os bairros históricos de Lisboa para fazer chegar os livros a todos, a história é outra!

A ideia partiu de Elsa Serra, contadora de histórias profissional, formadora e autora. O projecto chama-se Na Rua Com Histórias - Uma Biblioteca Para Todos e pretende incluir todos os grupos na rota das leituras, sejam idosos, crianças, sem-abrigo, nos bairros de Alfama, Castelo, Graça e Mouraria.

E é assim, de forma sustentável e amiga do ambiente, que o Tuk-tuk transformado em biblioteca percorre os bairros, cumprindo rotas pré-definidas com paragens em vários locais, que serão anunciadas no site, onde brevemente se poderá fazer a reserva e requisição de livros. Uma óptima ideia, bravo!

Saibam mais e conheçam as rotas no site da Timeout.


Quem por aqui passa de vez em quando já se apercebeu de que Philip Roth é um dos meus autores favoritos, e até já havia "brincado", dizendo que poderia ser que, quando morresse, finalmente lhe atribuíssem o Nobel que merece.

Tinha 85 anos e deixou-nos obras marcantes como A Macha Humana, Quando Ela Era Boa, O Complexo de Portnoy ou A Conspiração Contra a América. Era um homem sem medo, que não temia o choque e que explorava qualquer tema com abertura e com perspectivas completamente fora da caixa. Era muito à frente do seu tempo, um visionário, um combatente, um pró-activo. Tenho mesmo muita pena, o mundo literário, e não só, empobreceu.

Entre outros prémios, venceu o Pulitzer, o National Book Award e o Man Booker International. Até sempre. Vemo-nos nas tuas letras, podes ter a certeza.


O Diana Bar, na Póvoa de Varzim, abriu portas em 1940. Tornou-se um marco na região e um ponto de encontro para várias figuras da cena nacional, como Agustina Bessa-Luís ou Manoel de Oliveira. O cliente mais assíduo era José Régio, que tinha ali assento reservado, e que, quem sabe inspirado na possibilidade de ver o mar pelas grandes janelas, ali escreveu muitas obras.

Infelizmente, nos anos 90, quando o fundador do espaço morreu, o Diana Bar também foi morrendo. A Câmara Municipal restaurou o espaço e ele é hoje uma biblioteca que manteve grande parte da sua estrutura. Quem visita não pode deixar de reparar que a mesa e a cadeira de José Régio se mantêm por lá, em homenagem sentida.

Mais do que feliz pela existência de um novo espaço de leitura, agrada-me tanto este perservar das nossas raízes e da nossa cultura, tão, mas tão raro, que merece a nossa menção e os parabéns.

Saiba mais no site do JN.



O narrador é um escritor frustrado e hipocondríaco, que usa uma muleta para apoiar uma perna que diz doente mas na qual nenhum médico consegue descortinar problemas. O seu insucesso, dores e isolamento fazem de si uma pessoa amarga e que pouco se aventura fora das portas do seu apartamento. Quando surge o convite para participar num evento literário em Budapeste, acaba por aceitar devido à precariedade das suas economias, embora fazer uma viagem seja a última coisa que lhe apeteça.

Lá, acaba por conhecer um escritor italiano mais jovem, Vincenzo, enérgico, cheio de ideias, que o arrasta pela noite da cidade e que o apresenta às suas amigas Olivia e Nina. Vincenzo tem uma ideia fixa que é visitar a casa de Don Metzger, um imponente produtor de cinema que se inspira em livros. Através da influência do pai, Vincenzo conseguiu fazer-se convidado para a casa de campo do produtor no meio de um isolado bosque italiano, enigmaticamente denonimada de Bom Inverno.

Sem saber muito bem como, mas sobretudo devido à insistência sem fim de Vincenzo e à curiosidade que se foi aguçando, o narrador é convencido a acompanhar o grupo até Itália. Os quatro começam então uma aventura rumo ao quase totalmente desconhecido. Chegados à casa do produtor, que se encontra ausente, conhecem várias pessoas ligadas à indústria e que aproveitam as regalias oferecidas pela casa de Don Metzger - o vinho e o champanhe, a comida, a casa moderna, o fabuloso lago, os sons do frondoso bosque.

A relativa paz termina quando, no fim de uma primeira noite de muitos excessos, Don Metzger finalmente aparece, mas morto. O seu empregado e amigo Bosco, presença imponente e ameaçadora, faz de si próprio justiceiro e quer ver morto quem cometeu o crime. Ele espera respostas, e se não as tiver, vai eliminando os presentes, um por um. Ensombrados pela ameaça, petrificados pela sombra da morte e surpreendidos pelo fatídico destino que os esperava no meio de um bosque italiano, os protagonistas veem-se numa inesperada luta pela sobrevivência e pela constante dúvida de quem será o assassino.

É um livro cujo início não fazia prever um tamanho suspense. São dispendidas muitas páginas a dar-nos a conhecer o narrador, cujas maleitas, imaginadas ou não, e cujo feitio reservado, para dizer o mínimo, não faziam antever que se fosse meter numa aventura deste tipo. Essa parte é um pouco inacreditável até para o imenso talento de João Tordo. Ficamos (fiquei) um pouco de pé atrás com a incongruência, mesmo que tenhamos em consideração toda uma moral ligada ao ultrapassar dos nossos medos.

Mas adiante, que o que se veio a passar de seguida fez-me esquecer a anterior torcidela de nariz. Quando o livro se transforma num thriller, quando deixa para trás o contexto e o como, torna-se num suspense irrepreensível, com um ambiente de cortar à faca, com muitas perguntas requerendo respostas, que nos deixam agarrados e curiosos até à última página. As situações surpreendentes, os diálogos, os mistérios, até mesmo os sonhos que o narrador nos vai contando, contribuem para que este seja um dos melhores livros do género que já li escritos na língua de Camões.

É uma leitura fluída e arrepiante, que nos oferece um puro prazer de leitura que só um livro originalmente em português pode fazer.

O Bom Inverno
De: João Tordo
Ano: 2010
Editora: Dom Quixote
Páginas: 292

A nossa pontuação: ★★★★☆
Disponível no site Wook.

Cipriano Algor é oleiro, certamente um dos últimos. Naquela olaria na periferia do Centro, quatro gerações transformaram o barro com as suas próprias mãos, com os métodos mais arcaicos e que já não se usam. Marta é a sua filha e Marçal, o genro. Vivem os três na casa junto à olaria, onde não há luxos mas há lufadas de ar livre, uma amoreira-preta e uma vida calma e honesta.

O já referido Centro é difícil de definir. O leitor vai tendo cada vez mais lamirés sobre o mesmo e vai construindo a sua ideia. É como se fosse uma cidade dentro de uma cidade, onde o betão cresce para os lados, para cima e para baixo de chão. É um local que oferece tudo o que existe no mundo e que tem toda a tecnologia do universo. O Centro vai crescendo e absorvendo as pessoas, o comércio e os serviços, até que fora dos seus muros nada floresça. Muitas pessoas anseiam pela modernidade do Centro e pela possibilidade de lá viver. Mas não Cipriano. Cipriano quer continuar a viver do que as suas mãos produzem na lama vermelha. Só de pensar naquelas gaiolas a que chamam casa, onde é proibido abrir janelas para se manter a temperatura e a humidade, fica doente. No entanto, o seu genro, segurança no Centro, está na eminência de ser promovido e terão de se mudar para lá quando isso acontecer.

Antes disso, o oleiro vê a sua vida a andar para trás quando o departamento de compras do Centro lhe comunica que os clientes já não estão interessados nas suas peças. As encomendas são canceladas e o homem que só sabe viver do barro vê-se a bater com a cabeça nas paredes e sem propósito. No entanto, a vida ainda lhe trará muitos altos e baixos apesar dos seus já 60 e tal anos de idade. Entre elas, o aparecimento de um cão errante na sua propriedade, que baptizou de Achado; e a viúva Isaura Estudiosa. O primeiro vai dar-lhe companhia e alegrias; e vai desejar muito que a segunda lhe dê companhia e alegrias. Embora, como um homem do antigamente, não verbalize nada do que lhe vai passeando no interior.

A sua filha Marta tem uma ideia que pretende tanto elevar a moral do pai como a sua própria, e um novo projecto vai ocupar-lhes as mãos e o espírito, ambos carentes. E assim vamos acompanhando os Algores, o Achado, Marçal e Isaura, algumas das melhores personagens que já tive o prazer de conhecer.

Adoro Saramago, simplesmente adoro. Ainda não tinha lido A Caverna, mas enquadra-se perfeitamente no seu estilo. Mas parece que, dada a simplicidade destas gentes, dos seus actos, das suas palavras parcas mas sempre cheias de segundos, terceiros e quartos significados, a sua escrita ganha asas ainda maiores, atinge-nos o coração, fala-nos directamente cá para dentro, imprime-nos uma marca que não passará.

A história é simples e apesar de falar de um futuro (ou de um presente, ou passado) distópico, é óbvio de que se trata de cada um de nós, da maneira como a humanidade mudou e para onde vai; da complicação que nós próprios provocamos e do nosso afastamento das raízes; do querer ser mais e ter mais quando precisamos de muito pouco para ser felizes. Juntando tudo isto à mestria do autor, temos um tocante romance que, inevitavelmente, oferece um tipo de melancolia rara, que nos atinge de forma irrevogável.

A mim, atingiu-me como um trovão. Sendo proveniente da terrinha, onde os meus avós viviam do que faziam com as mãos (e onde muita gente o faz ainda), consegui sentir na pele e na alma todas as palavras. Senti a tristeza destes tempos onde todos compram tudo feito, onde tudo é facilitado e realizado para ser de consumo rápido, onde o ponto A e o ponto B são os objectivos sem que se desfrute do caminho, onde o progresso mata devagarinho a identidade do povo. Sei que não há volta a dar, e essa irreversabilidade, o perder para sempre do talento individual para a sociedade massificada, a perda de importância do que é natural em detrimento do lucro, das regras e de um lugar ao sol artificial, fizeram-me chorar.

Se fosse outro autor a contar esta história, não teria sido tão bom. Não tenho mais adjectivos, do que dizer que é um livro brilhante.

A Caverna
De: José Saramago
Ano: 2000
Editora: Porto Editora
Páginas: 368

A nossa pontuação: ★★★★★
Disponível no site Wook.

Este é talvez o livro mais conhecido de Philip Roth e é talvez aquele que menos consenso reúne. A verdade é que não é um livro fácil. Todo o livro é um monólogo, extenso, embora hilariante, de Portnoy enquanto paciente num divã de psicanálise.

Pese embora o longo discurso sobre si próprio, a narrativa é tudo menos linear. O modo como está escrito faz com que consigamos imaginar totalmente este homem a desabafar e o ênfase que dá a cada verbalização, como se estivesse a falar connosco. Sabemos perfeitamente quando está calmo e nostálgico, depressivo ou entusiasta simplesmente pela cadência das frases, pela pontuação ou linguagem, e isto só um escritor brilhante sabe fazer.

O arrojo do autor não se prende somente com esta forma arriscada de escrever, mas também pelo tema. Alexander Portnoy é um judeu cuja sexualidade está virada do avesso, e ele culpa a mãe. Culpa o seu zelo excessivo, a sua exigência para que ele fosse perfeito, os ensinamentos descabidos, a pressão sem limites. Culpa-a por ter feito com que o seu único escape, enquanto adolescente, fosse uma masturbação tão desenfreada que o próprio tinha medo de provocar cancro com tanta fricção. E sim, usava a roupa interior da mãe e da irmã para o efeito.

E se Alexander é agora um trintão solteiro que só pensa em rodar mulheres, que fica louco com a visão de todas as mamas disponíveis no mundo e que não tem nenhuma vontade de escolher apenas um par delas e assentar, é porque a mãe o pressiona nesse sentido, porque a sua família deturpou a imagem familiar, porque lhe impuseram restrições, porque quiseram escolher a sua vida por ele.

A linguagem é completamente sem filtro - com direito a bolinha vermelha ao canto. Não deixa de ser um texto sério, o relato de uma mente deturpada e com todo o contexto político e social na América judaica que ainda sente a sombra das atrocidades da guerra. Como tal, é um livro muito à frente do tempo, com uma sinceridade e liberdade que quase comovem. E, claro, é muito cómico, não podia ser de outra forma com uma premissa destas.

O Complexo de Portnoy
De: Philip Roth
Ano: 1969
Editora: Dom Quixote
Páginas: 272

A nossa pontuação: ★★★★☆
Disponível no site Wook.

Amadeu passou 10 anos na prisão, acusado de ter tirado a vida à filha do presidente da Junta. Agora que está novamente em liberdade, conhecemos o seu passado e o percurso que está a fazer de regresso à origem, à terrinha que o definhou e que o esvaziou por dentro, acompanhado de um cão esquelético que encontrou no caminho.

Cândida é a mãe de Amadeu e é puta. Do seu trabalho nasceram favores, inquietações, augúrios, mas acima de tudo o estigma para o seu filho. Toda a gente sabe que filho de puta é preguiçoso. Cândida não sabe muito mais do que usar as fartas mamas como argumento mesmo que agora não passem de sacos vazios ao vento.

Briosa, a mãe e o irmão vivem afastados e alheados. A mãe passa o dia a beber, tentando esquecer que o próprio pai lhe fez um filho, que ela mantém agrilhoado onde o sol não bate. É Briosa quem dele cuida, o alimenta, lhe corta o cabelo e lhe vai tirando o sarro da pele, quando não está a tocar-se no telhado ou a ser o depósito do fervor do pastor.

Este livro tinha tudo para eu gostar dele. Gosto destas personagens rústicas, da bagagem que trazem, dos modos de vida que nos parecem tão peculiares mas que são norma em muitos locais. Gosto da falta de segredos que nos é exposta, o mundo tal como ele é à nossa disposição sem segredos, por muito vergonhosos que para alguns de nós possam parecer. Gosto de tragédias pessoais e de mundos do avesso. E por ter uma expectativa tão alta, desiludi-me.

Com personagens e contextos tão desenvolvidos e característicos, o meu problema não se encontrou aí, obviamente, mas sim na escrita. Não houve página, pensamento ou parágrafo em que tudo passasse à primeira. O leitor perde-se na complexidade das frases, do tempo, do discurso, no exagero da descrição. A leitura não foi, para mim, natural e fluída. Vi-me a parar demasiadas vezes para reler páginas inteiras que numa primeira passagem nada retive.

Foi muito cansativo. E foi uma pena. Acredito que será uma óptima descoberta para muitos leitores mas para mim foi um suplício, uma pista de obstáculos em vez de uma maratona limpa.

Mea Culpa
De: Carla Pais
Ano: 2017
Editora: Porto Editora
Páginas: 208

A nossa pontuação: ★★☆☆☆
Disponível no site Wook.


Guylain tem uma profissão que qualquer amante da literatura iria odiar - ele manobra uma máquina gigante que tem como objectivo esmagar, quebrar, e tornar uma massa os livros velhos e fora de uso, destruindo as palavras, o conhecimento e a beleza efémera daquelas letras.

Tendo pena de ver os livros morrer, ele vai surripiando algumas páginas e lê-as em voz alta, todos os dias, no comboio que o traz e leva a casa. Como se senta sempre no mesmo lugar, os outros passageiros já o conhecem e sabem que vão poder ouvir a declamação, que tanto pode ser de um livro de História, de receitas ou um romance tórrido. O conteúdo não importa a Guylain - apenas fazer viver os livros mais um pouco, partilhando-os com a sua audiência no transporte público.

Apesar da intervenção em público que efectua diariamente, Guylain não é dado a actividades sociais e até é tímido, tem poucos amigos, e a sua única companhia efectiva é um peixe vermelho. Um dia, quando puxa o banco rebatível onde se costuma sentar no comboio, uma pen drive cai ao chão e ele guarda-a. Quando, mais tarde, consulta o conteúdo em casa, descobre um conjunto de textos escritos por uma mulher. Ele bebe as suas palavras e mergulha nelas como nunca havia feito com nada. Então, o homem tímido e solitário encontra um propósito - a busca por esta mulher, de quem pouco sabe, mas por quem se apaixona através dos seus escritos cómicos e sinceros.

É um livro que, apesar de ter algumas tragédias à mistura, é leve e divertido na sua essência. As personagens são interessantes e a premissa agarra logo à partida. Todos nos conseguiríamos colocar na pele de Guylain, e sentir a sua dor ao destruir os livros; e todos aplaudiríamos a sua iniciativa de ler os seus restos em voz alta no comboio num acto extremamente poético. O livro peca exactamente na sua simplicidade - é tão positivo e leve (apesar da sombra da destruição literária) que sabemos que vai correr tudo bem.

Lê-se muito rapidamente e para quem adora livros sobre livros, livros dentro de livros, e se procura uma história divertida, ternurenta e deliciosa, este é para si.

O Leitor do Comboio
De: Jean-Paul Didierlaurent
Ano: 2015
Editora: Clube do Autor
Páginas: 196

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.
Hoje é o dia mundial do livro! Aproveitem bem o dia - que é o mesmo que dizer: LEIAM MUITO! 😄


Um conselho da Manda de Histórias, e nosso também! 💚😃



Corre o ano de 1857 e a moral do capitão Abner Marsh já viu melhores dias. Homem do rio, com um grande amor por este, é dono de uma empresa de barcos a vapor mas devido a vários azares viu a sua frota reduzida a apenas um pequeno barco. Um dia, é abordado por um aristocrata abastado, Joshua York, disposto a ser seu sócio e financiar a construção do maior e mais belo barco que as águas já viram.

O capitão fica dividido - por um lado, aquela é a oportunidade de se reerguer e de ser o orgulhoso co-proprietário do melhor barco do Mississipi, que é um sonho tornado realidade; por outro, aquela oferta generosa terá decerto água no bico. Joshua York pede apenas em troca que sejam facultados camarotes para alguns amigos que subirão a bordo durante as viagens e que Abner não faça perguntas sobre os seus hábitos estranhos.

A exigência não pareceu descabida ao capitão, e o acordo é selado. Depois de construído, o barco é baptizado de Fevre Dream e começa então o transporte de mercadorias e de passageiros, tornando-se um grande orgulho para o respeitado capitão, que agora tem um barco à altura da sua reputação e profissionalismo.

No entanto, a estranheza do seu sócio começa a tornar-se incómoda. Apesar de lhe ter sido pedido para não fazer perguntas, os hábitos de Joshua York começam a levantar questões entre toda a tripulação. Ele nunca sai do seu camarote durante o dia, e por vezes ficam semanas à espera que ele regresse das suas incursões nocturnas pelas cidades, deixando os passageiros nervosos com a demora com a retoma da marcha. Para além disso, os "amigos" que vai trazendo para o barco são estranhos e numa das suas aventuras nocturnas reaparece manchado de sangue.

Marsh vê-se obrigado a confrontar o seu sócio e é apresentado a uma realidade sinistra e a um problema muito maior do que à primeira vista poderia parecer. A sede vermelha existe, o povo da noite anda pelo mundo desde há séculos alimentando-se do sangue e da beleza humanos.

Nunca tinha lido nada do George R. R. Martin para além da saga Game of Thrones e ficou-me provado que o autor é muito mais do que a cara por trás de Westeros. Este Sonho Febril é dos melhores thrillers / suspenses que já li. É sério, algo assustador, surpreendente, com a estrutura certa. Tal como esperado quando se conhece o autor, as personagens são imensas mas nem por um momento ficamos confusos. Tem acção, corridas, lutas, mortes, segredos, e apesar de ter o sobrenatural como tema nem por um momento duvidamos da veracidade do que lemos - é preciso muito talento para um autor conseguir isso.

É daquelas leituras que não conseguimos parar e aproveitamos todos os momentos para ler mais um pouco. Um drama histórico que explora a figura mitológica do vampiro com uma abordagem original. Recomendado.

Sonho Febril
De: George R. R. Martin
Ano: 2004
Editora: Saída de Emergência
Páginas: 400

A nossa pontuação: ★★★★☆
Disponível no site Wook.
Em 1978: John Rothstein é um escritor que, apesar de odiado por muitos, é considerado genial, e agora vive em reclusão e não publica há muito tempo. Morris Bellamy é um admirador perigoso, que vai assaltar a casa do escritor e acabar por matá-lo, roubando o (pouco importante) dinheiro do cofre e uma quantidade enorme de cadernos manuscritos. Esses, sim, são o orgulho de Morris, que pretende, primeiro, lê-los e tornar-se o leitor mais privilegiado do planeta, e depois vendê-los a um preço exorbitante.

Acontece que o negócio corre mal e Morris percebe que tem de aguardar algum tempo até que possa vender os livros em segurança, acabando por escondê-los num local perto da sua casa. Só que, para seu enorme azar, é condenado a prisão por outro crime que cometeu num momento de fraqueza.

Em 2009: Pete Saubers é um adolescente cuja família foi atingida pela recessão e pelo azar - o seu pai é uma das vítimas do assassino do Mercedes (primeiro livro desta saga) e ficou com profundas fragilidades físicas; a sua mãe foi obrigada a reduzir o seu horário de trabalho, e portanto, todos eles, e a irmã, tiveram de ir morar para outro local mais em conta. No decorrer de mais uma discussão dos pais, Pete afasta-se de casa e caminha sem destino, e acaba por encontrar a arca que contém o dinheiro e os cadernos de Rothstein. Vê nestes uma solução para os problemas da família e, sem contar a ninguém, vai engendrar um plano que os beneficia.

Em 2014: Morris sai da cadeia e o pensamento que o manteve vivo foi saber que tinha aquele prémio à sua espera. É claro que teve a desilusão da sua vida quando encontrou a arca vazia. A sua fúria e desilusão vão torná-lo imparável numa busca desenfreada e mortal...

Este é o segundo livro da trilogia que tem Bill Hodges como investigador. Neste, ele entra em cena quando Pete já está em perigo, portanto, numa fase mais adiantada da narrativa. Para mim, não é uma história tão impressionante como a anterior (ver aqui). É interessante e Stephen King sabe prender-nos como ninguém, mas não é tão surpreendente, emocionante e inesperada como habitual. Aliás, os melhores momentos de suspense têm que ver com o livro anterior e com a relação doentia de Bill com o assassino do Mercedes.

No entanto, um ponto bastante positivo decorrente do facto de se estar a falar essencialmente dos trabalhos roubados de um grande escritor, é o facto de nos serem apresentadas imensas curiosidades sobre literatura, o negócio livreiro, dicas sobre livros e autores e citações míticas. E é claro que os leitores ávidos irão apreciar estas dádivas.

Como sua fã incondicional irei ler o capítulo seguinte desta saga, mas aguardo ansiosamente um registo mais ao estilo do velho Stephen King, daqueles de fazer arrepiar a espinha.


Perdido e Achado
De: Stephen King
Ano: 2015
Editora: Bertrand
Páginas: 392

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.