Amadeu passou 10 anos na prisão, acusado de ter tirado a vida à filha do presidente da Junta. Agora que está novamente em liberdade, conhecemos o seu passado e o percurso que está a fazer de regresso à origem, à terrinha que o definhou e que o esvaziou por dentro, acompanhado de um cão esquelético que encontrou no caminho.

Cândida é a mãe de Amadeu e é puta. Do seu trabalho nasceram favores, inquietações, augúrios, mas acima de tudo o estigma para o seu filho. Toda a gente sabe que filho de puta é preguiçoso. Cândida não sabe muito mais do que usar as fartas mamas como argumento mesmo que agora não passem de sacos vazios ao vento.

Briosa, a mãe e o irmão vivem afastados e alheados. A mãe passa o dia a beber, tentando esquecer que o próprio pai lhe fez um filho, que ela mantém agrilhoado onde o sol não bate. É Briosa quem dele cuida, o alimenta, lhe corta o cabelo e lhe vai tirando o sarro da pele, quando não está a tocar-se no telhado ou a ser o depósito do fervor do pastor.

Este livro tinha tudo para eu gostar dele. Gosto destas personagens rústicas, da bagagem que trazem, dos modos de vida que nos parecem tão peculiares mas que são norma em muitos locais. Gosto da falta de segredos que nos é exposta, o mundo tal como ele é à nossa disposição sem segredos, por muito vergonhosos que para alguns de nós possam parecer. Gosto de tragédias pessoais e de mundos do avesso. E por ter uma expectativa tão alta, desiludi-me.

Com personagens e contextos tão desenvolvidos e característicos, o meu problema não se encontrou aí, obviamente, mas sim na escrita. Não houve página, pensamento ou parágrafo em que tudo passasse à primeira. O leitor perde-se na complexidade das frases, do tempo, do discurso, no exagero da descrição. A leitura não foi, para mim, natural e fluída. Vi-me a parar demasiadas vezes para reler páginas inteiras que numa primeira passagem nada retive.

Foi muito cansativo. E foi uma pena. Acredito que será uma óptima descoberta para muitos leitores mas para mim foi um suplício, uma pista de obstáculos em vez de uma maratona limpa.

Mea Culpa
De: Carla Pais
Ano: 2017
Editora: Porto Editora
Páginas: 208

A nossa pontuação: ★★☆☆☆
Disponível no site Wook.


Guylain tem uma profissão que qualquer amante da literatura iria odiar - ele manobra uma máquina gigante que tem como objectivo esmagar, quebrar, e tornar uma massa os livros velhos e fora de uso, destruindo as palavras, o conhecimento e a beleza efémera daquelas letras.

Tendo pena de ver os livros morrer, ele vai surripiando algumas páginas e lê-as em voz alta, todos os dias, no comboio que o traz e leva a casa. Como se senta sempre no mesmo lugar, os outros passageiros já o conhecem e sabem que vão poder ouvir a declamação, que tanto pode ser de um livro de História, de receitas ou um romance tórrido. O conteúdo não importa a Guylain - apenas fazer viver os livros mais um pouco, partilhando-os com a sua audiência no transporte público.

Apesar da intervenção em público que efectua diariamente, Guylain não é dado a actividades sociais e até é tímido, tem poucos amigos, e a sua única companhia efectiva é um peixe vermelho. Um dia, quando puxa o banco rebatível onde se costuma sentar no comboio, uma pen drive cai ao chão e ele guarda-a. Quando, mais tarde, consulta o conteúdo em casa, descobre um conjunto de textos escritos por uma mulher. Ele bebe as suas palavras e mergulha nelas como nunca havia feito com nada. Então, o homem tímido e solitário encontra um propósito - a busca por esta mulher, de quem pouco sabe, mas por quem se apaixona através dos seus escritos cómicos e sinceros.

É um livro que, apesar de ter algumas tragédias à mistura, é leve e divertido na sua essência. As personagens são interessantes e a premissa agarra logo à partida. Todos nos conseguiríamos colocar na pele de Guylain, e sentir a sua dor ao destruir os livros; e todos aplaudiríamos a sua iniciativa de ler os seus restos em voz alta no comboio num acto extremamente poético. O livro peca exactamente na sua simplicidade - é tão positivo e leve (apesar da sombra da destruição literária) que sabemos que vai correr tudo bem.

Lê-se muito rapidamente e para quem adora livros sobre livros, livros dentro de livros, e se procura uma história divertida, ternurenta e deliciosa, este é para si.

O Leitor do Comboio
De: Jean-Paul Didierlaurent
Ano: 2015
Editora: Clube do Autor
Páginas: 196

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.
Hoje é o dia mundial do livro! Aproveitem bem o dia - que é o mesmo que dizer: LEIAM MUITO! 😄


Um conselho da Manda de Histórias, e nosso também! 💚😃



Corre o ano de 1857 e a moral do capitão Abner Marsh já viu melhores dias. Homem do rio, com um grande amor por este, é dono de uma empresa de barcos a vapor mas devido a vários azares viu a sua frota reduzida a apenas um pequeno barco. Um dia, é abordado por um aristocrata abastado, Joshua York, disposto a ser seu sócio e financiar a construção do maior e mais belo barco que as águas já viram.

O capitão fica dividido - por um lado, aquela é a oportunidade de se reerguer e de ser o orgulhoso co-proprietário do melhor barco do Mississipi, que é um sonho tornado realidade; por outro, aquela oferta generosa terá decerto água no bico. Joshua York pede apenas em troca que sejam facultados camarotes para alguns amigos que subirão a bordo durante as viagens e que Abner não faça perguntas sobre os seus hábitos estranhos.

A exigência não pareceu descabida ao capitão, e o acordo é selado. Depois de construído, o barco é baptizado de Fevre Dream e começa então o transporte de mercadorias e de passageiros, tornando-se um grande orgulho para o respeitado capitão, que agora tem um barco à altura da sua reputação e profissionalismo.

No entanto, a estranheza do seu sócio começa a tornar-se incómoda. Apesar de lhe ter sido pedido para não fazer perguntas, os hábitos de Joshua York começam a levantar questões entre toda a tripulação. Ele nunca sai do seu camarote durante o dia, e por vezes ficam semanas à espera que ele regresse das suas incursões nocturnas pelas cidades, deixando os passageiros nervosos com a demora com a retoma da marcha. Para além disso, os "amigos" que vai trazendo para o barco são estranhos e numa das suas aventuras nocturnas reaparece manchado de sangue.

Marsh vê-se obrigado a confrontar o seu sócio e é apresentado a uma realidade sinistra e a um problema muito maior do que à primeira vista poderia parecer. A sede vermelha existe, o povo da noite anda pelo mundo desde há séculos alimentando-se do sangue e da beleza humanos.

Nunca tinha lido nada do George R. R. Martin para além da saga Game of Thrones e ficou-me provado que o autor é muito mais do que a cara por trás de Westeros. Este Sonho Febril é dos melhores thrillers / suspenses que já li. É sério, algo assustador, surpreendente, com a estrutura certa. Tal como esperado quando se conhece o autor, as personagens são imensas mas nem por um momento ficamos confusos. Tem acção, corridas, lutas, mortes, segredos, e apesar de ter o sobrenatural como tema nem por um momento duvidamos da veracidade do que lemos - é preciso muito talento para um autor conseguir isso.

É daquelas leituras que não conseguimos parar e aproveitamos todos os momentos para ler mais um pouco. Um drama histórico que explora a figura mitológica do vampiro com uma abordagem original. Recomendado.

Sonho Febril
De: George R. R. Martin
Ano: 2004
Editora: Saída de Emergência
Páginas: 400

A nossa pontuação: ★★★★☆
Disponível no site Wook.
Em 1978: John Rothstein é um escritor que, apesar de odiado por muitos, é considerado genial, e agora vive em reclusão e não publica há muito tempo. Morris Bellamy é um admirador perigoso, que vai assaltar a casa do escritor e acabar por matá-lo, roubando o (pouco importante) dinheiro do cofre e uma quantidade enorme de cadernos manuscritos. Esses, sim, são o orgulho de Morris, que pretende, primeiro, lê-los e tornar-se o leitor mais privilegiado do planeta, e depois vendê-los a um preço exorbitante.

Acontece que o negócio corre mal e Morris percebe que tem de aguardar algum tempo até que possa vender os livros em segurança, acabando por escondê-los num local perto da sua casa. Só que, para seu enorme azar, é condenado a prisão por outro crime que cometeu num momento de fraqueza.

Em 2009: Pete Saubers é um adolescente cuja família foi atingida pela recessão e pelo azar - o seu pai é uma das vítimas do assassino do Mercedes (primeiro livro desta saga) e ficou com profundas fragilidades físicas; a sua mãe foi obrigada a reduzir o seu horário de trabalho, e portanto, todos eles, e a irmã, tiveram de ir morar para outro local mais em conta. No decorrer de mais uma discussão dos pais, Pete afasta-se de casa e caminha sem destino, e acaba por encontrar a arca que contém o dinheiro e os cadernos de Rothstein. Vê nestes uma solução para os problemas da família e, sem contar a ninguém, vai engendrar um plano que os beneficia.

Em 2014: Morris sai da cadeia e o pensamento que o manteve vivo foi saber que tinha aquele prémio à sua espera. É claro que teve a desilusão da sua vida quando encontrou a arca vazia. A sua fúria e desilusão vão torná-lo imparável numa busca desenfreada e mortal...

Este é o segundo livro da trilogia que tem Bill Hodges como investigador. Neste, ele entra em cena quando Pete já está em perigo, portanto, numa fase mais adiantada da narrativa. Para mim, não é uma história tão impressionante como a anterior (ver aqui). É interessante e Stephen King sabe prender-nos como ninguém, mas não é tão surpreendente, emocionante e inesperada como habitual. Aliás, os melhores momentos de suspense têm que ver com o livro anterior e com a relação doentia de Bill com o assassino do Mercedes.

No entanto, um ponto bastante positivo decorrente do facto de se estar a falar essencialmente dos trabalhos roubados de um grande escritor, é o facto de nos serem apresentadas imensas curiosidades sobre literatura, o negócio livreiro, dicas sobre livros e autores e citações míticas. E é claro que os leitores ávidos irão apreciar estas dádivas.

Como sua fã incondicional irei ler o capítulo seguinte desta saga, mas aguardo ansiosamente um registo mais ao estilo do velho Stephen King, daqueles de fazer arrepiar a espinha.


Perdido e Achado
De: Stephen King
Ano: 2015
Editora: Bertrand
Páginas: 392

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.
Ove é um homem rabugento e de parcas palavras. Um homem à moda antiga, que gosta mais de meter a mão na massa para arranjar um carro ou um electrodoméstico do que cumprimentar o vizinho do lado. Até é capaz de meter a cabeça dentro do motor para não ter de lhe falar.

Diz que já o chamaram de anti-social mas ele não quer saber de rótulos. É uma pessoa simples que acha que os homens se medem por aquilo que são capazes de construir com as próprias mãos e odeia tudo o que a modernidade representa - os jovens que só ligam aos estranhos aparelhos e que nem são capazes de mudar a corrente de uma bicicleta; as pessoas que compram tudo feito ou que pagam para lhes fazerem tudo (até uma coisa tão simples como montar um móvel!); as aventesmas que compram banheiras americanas com mudanças automáticas (como se isso fosse conduzir!).

É daquele tipo de pessoa que é capaz de escrever centenas de cartas à Câmara para impedir que alguém do bairro coloque janelas novas que sejam diferentes das restantes moradias e que nunca mais mete os pés no café por uma vez se terem enganado no troco, nos idos anos 90. É irascível, mas como devem imaginar, é super cómico.

Por trás da rabujice, do cenho constantemente cerrado, dos maus modos com que trata toda a gente e da aparente falta de sensibilidade, Ove encerra uma história comovente. Esta começa quando percebemos que a sua mulher morreu, e vamos encontrando capítulos que recuam no tempo e nos explicam como foi construído o carácter deste homem, que hoje é quase como um bloco de cimento.

A história vai funcionando assim, mostrando-nos fragmentos do passado enquanto a narrativa presente se desenvolve e nos apresenta as pessoas que fazem parte da sua vida e que vão ganhando o seu respeito e amizade. E assim, este homem que planeava tirar a sua própria vida por já não lhe ver um propósito prático, vê-se rodeado de pessoas (e de um gato) que ainda precisam dele, apreciam o seu talento e que o valorizam mais do que ele alguma vez poderia imaginar.

Este livro foi uma surpresa excelente. Pôs-me a rir a bandeiras despregadas mas também me fez soltar uma lagriminha. De uma forma bastante simples - que é essencial, pois todos conhecemos um Ove e assim conseguimos colocá-lo na nossa realidade - mostra o impacto que podemos ter na vida dos outros, mesmo nas coisas mais singelas. É leve, encantador, cómico - uma leitura perfeita para desanuviar de coisas mais pesadads. Mal posso esperar por ter outros trabalhos do autor sueco.

O livro deu origem a um filme com o mesmo nome, em 2015, que foi nomeado para Melhor Filme Estrangeiro. Desconhecia, mas agora que li o livro está no topo das minhas prioridades. Recomendadíssimo.

Um Homem Chamado Ove
De: Fredrik Backman
Ano: 2014
Editora: Editorial Presença
Páginas: 312

A nossa pontuação: ★★★★☆
Disponível no site Wook.