Em São Paulo, em Vila Mariana, uma faculdade organizou uma biblioteca que está aberta todos os dias, a toda a hora. Não há paredes, vidros ou porteiros - todos são livres de passar por lá e escolher um livro.

A biblioteca comunitária está localizada à entrada da faculdade ESPM e foi inaugurada no passado dia 19 com um concerto tocado pelos alunos para chamar a atenção dos transeuntes. O projecto chama-se "Livro Livre" e não há prazos de devolução, papéis ou inscrições. Já são cerca de 2 mil livros disponíveis através de doações.

Uma óptima ideia organizada por alunos, e por cá apoiamos todos os projectos que espalhem o conhecimento e o amor pelos livros, especialmente os promovidos por aqueles que serão o nosso futuro.


As vidas de quatro homens são-nos narradas, neste livro ambientado nos anos 50 nos Estados Unidos, mais precisamente numa pequena terreola chamada Milan.

O livro começa com J. T. Malone, o farmacêutico da terra, homem simples de família, mas com algum ressentimento para com a mulher que se desenrasca melhor nos negócios do que ele. Sendo um homem da saúde, quando lhe é diagnosticada leucemia não quer acreditar. Pelo seu entendimento não passam de febres e outros males menores. Quando a realidade o atinge, a sua perspectiva da vida vai mudando, principalmente o modo como olha para o tempo.

O juíz Clane é um homem de idade avançada, que se julga a última bolacha do pacote em Milan - o promotor dos valores tradicionais que resiste ao avançar do tempo e das ideias. Fanfarrão, tendo-se em alta consideração, tem a tendência para só ouvir o que quer e ignorar o progresso. É-lhe impensável que, por exemplo, negros e brancos se misturem nas escolas e que criem qualquer outro laço que não seja o de patrão-criados.

Jester é o neto do juíz, criado por este depois do suicídio do pai. Apesar do juíz ser a sua única influência masculina, Jester, agora adolescente, pensa de forma completamente distinta. Não é só por dar por si a pensar nos homens de maneira diferente, de um modo proibido de acordo com tudo o que lhe foi ensinado; mas acredita na igualdade, que a maldade e a inteligência não surgem pré-definidas com a cor da pele. Isto provoca atritos com o avô, embora este finja não compreender ou minimize os seus devaneios liberais.

Sherman é um órfão negro detentor de uns olhos azuis fora do normal. Contratado para ser secretário do juíz, o que começa por ser uma relação de admiração mútua vai-se degradando até se tornar em incompressão e atrito, à medida que Sherman percebe que o idoso nunca o encarará como um igual, apesar dos seus modos e inteligência que considera dignos e fora de série tendo em conta a sua origem e cor da pele. Jester, da mesma idade, cria também uma relação tempestuosa com Sherman, que começa por ser de encantamento e atracção mas que passa por muita frustração. Sherman quer ser mais do que é, preserva as aparências, dá-se ares, criando uma distância entre ele e Jester que até faz o leitor implorar pelo baixar da guarda para poderem, pelo menos, ser amigos.

As vidas destes quatro homens vão-se cruzando no dia-a-dia de Milan e vamos dando conta delas. Numa época em que as diferenças raciais ou o papel da mulher são o assunto do momento, e em que a homosexualidade é simplesmente reprimida, estas histórias, que são simples na sua composição, são um veículo destas e de outras temáticas-chave. Através do entrecruzar dos relatos de quatro homens, é-nos apresentada toda uma sociedade, que é parcial, racista, resistente ao progresso, masculina, de visões curtas. Felizmente também vemos a esperança, aqui e ali, vislumbres da mudança que viria a marcar a evolução.

Tristemente, muita coisa que é dita neste relato dos anos 50 continua a ser ouvida hoje, o que mostra não só a actualidade do livro, como também a inércia das almas que habitam este planeta povoado de Velhos do Restelo. Parece que o tempo não avança como convém, que os relógios deles não têm ponteiros, que o tempo parou num segundo maligno.

A escrita é simples, directa, com diálogos assertivos mas com pontas de surrealidade marcados pelas personalidades vincadas das personagens, muito bem construídas. Fiquei curiosa para ler mais livros da autora.

Relógio Sem Ponteiros 
De: Carson McCullers
Ano: 1961
Editora: Publicações Europa-América
Páginas: 328

A nossa pontuação:  ★★★★☆
Disponível no site Wook.
De dia 01 a dia 03 de março o espaço associativo Mob vai realizar uma Feira do Livro Nocturna com imensas promoções ideais para adquirir mais uns títulos para a biblioteca pessoal.

Das 16h00 às 24h00 nas instalações do espaço na zona do Intendente em Lisboa todos os livros vão ter desconto. É uma excelente maneira de poupar e conhecer um pouco melhor o movimento social e comunitário do Mob. 

Podem saber mais sobre este evento (e outros bem interessantes!) na página do Facebook Mob - espaço associativo.



Um país acorda para um milagre. De um momento para o outro, os habitantes começam a rejuvenescer, em vez de envelhecer. As rugas desaparecem, a saúde melhora, a jovialidade reaparece, os cabelos vão readquirindo a cor. O povo rejubila, fica contente com o presente inesperado e inexplicável, mas só até perceber que se trata de um presente envenenado.

Primeiro, os bebés e crianças começam a desaparecer. Assim, puf. Como se nunca tivessem existido. A regressão da idade não tem limite, nem cura. Depois, surgiram as complicações no trabalho... Por exemplo, como confiar num ministro que agora aparenta ter 15 anos? E claro, surgiu um rol de questões mais burocráticas, como o que fazer com a idade da reforma, ou melhor, definir o que é a reforma, já que os velhos são os novos jovens, pois passaram a estar mais longe da morte. As profissões tiveram de se redefinir, porque, exemplificando, deixaram de existir lares de terceira idade para dar lugar a mais infantários.

E depois há a cobiça dos outros países... Todos querem um pedaço desta juventude, dádiva que só existe neste milagroso país. Guerras por petróleo ou religiosas são coisas do passado - aqui, luta-se pela fonte da juventude, pelo tempo.

Adorei esta ideia à la Benjamin Button e foi isso que me fez trazer o livro da biblioteca para casa. A narrativa está muito bem organizada - a perspectiva de algumas personagens é intercalada com textos escritos para jornais, revistas, publicitários, etc. É assim, em modo "informativo", que vamos sabendo o desenrolar da coisa e é um modo bastante original de escrever. O evoluir dos sentimentos em relação à dádiva é abismal - começa-se com uma alegria pura, que passa por cepticismo até começarem a chegar as verdadeiras preocupações.

O problema maior do livro são, para mim, as partes que acompanham as personagens específicas. Ao contrário das "notícias", a linguagem é rebuscada - tanto, que tive muitas dificuldades em acompanhá-las e a dado momento desisti. Elas são bastante estranhas, com hábitos e diálogos esquisitos, mas eu estou habituada a esquisitices e não é por aí. É mesmo não terem ponta por onde se lhes pegue. Portanto, tenho mixed feelings em relação ao livro, mas no cômputo geral o sentimento é positivo.

Envelhenescer
De: Pedro Chagas Freitas
Ano: 2017
Editora: Marcador
Páginas: 200

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.



Karan Seth é fotógrafo em Bombaim e por causa de um dos seus trabalhos foi "obrigado" a conviver com a socialite. Entrando pé ante pé num mundo dominado pelas estrelas de Bollywood, vê-se inserido em cenários de glamour, de pouca privacidade, de máscaras para a alma, onde, apesar do embaraço inicial e falta de pertença, faz bons amigos. Entre eles, Samar, um excêntrico pianista retirado antes dos 30 anos e Zaira, uma das actrizes mais respeitadas e bonitas do país.

No decorrer desta sua nova e inesperada vida, Karan também conhece Rhea, uma mulher casada com quem mantém uma relação conturbada cheia de altos e baixos, mas que o leva a conhecer alguns dos mais míticos, belos e desconhecidos locais para ele fotografar. Assim, partilham momentos únicos e poéticos, como a visão de milhares de flamingos que deu o título ao livro.

Karan não sabe se pertence àquele mundo, àquelas pessoas. Quando uma inesperada desgraça acontece e muda a dinâmica entre ele e os outros, e entre ele a cidade, e o mundo, deixa de se reconhecer, começa a ter comportamentos completamente fora do seu controlo e para recuperar de novo o seu eu vai ser necessária uma viagem interior gigantesca.

A prosa não é fácil - é demasiado trágica, os diálogos são um pouco inacreditáveis e longos, e o autor debruça-se, na minha opinião, demasiado tempo sobre acontecimentos mais triviais. No entanto há bastantes pontos positivos, como a exposição da Índia moderna, da alta sociedade, dos esquemas de corrupção, a exploração da sexualidade, as imagens poéticas criadas através da fotografia de Karan. Mostra ainda a fragilidade das relações e como podemos acabar de uma maneira muito diferente daquela que imaginámos.

Os Flamingos Perdidos de Bombaim
De: Siddharth Dhanvant Shanghvi
Ano: 2010
Editora: Livraria Civilização Editora
Páginas: 412

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.

Miguel está na casa dos 40 e tem Síndrome de Down. Quando os pais morrem, é o seu irmão que se chega à frente para ficar com ele, para o alívio das quatro irmãs, todas casadas e com filhos, com as suas vidas feitas e com pouco tempo para tomar conta de um adulto com necessidades especiais.

Ora este irmão, o narrador, apesar de ter tempo, não tem a proximidade de outros tempos com Miguel. Quando foi estudar para Lisboa afastou-se da família e tornou-se quase um estranho para ele. No entanto, os tempos da infância e da adolescência em que os dois se compreendiam como ninguém, embora se provocassem e enervassem mutuamente, falaram mais alto.

É-nos relatada uma história no tempo presente, quando os dois irmãos vão passar uns tempos à casa da família no Tojal, aldeia isolada do mundo, na esperança de acordar velhas memórias em Miguel que lhe tragam fantasmas da proximidade uma vez aí vivida, que os traga de novo para os abraços um do outro. Ao mesmo tempo, são-nos também entregues, intercaladamente, histórias do passado, das teimosias, das desavenças, das conversas e retaliações dos dois, mas também de um elemento que veio trazer muita angústia - a Luciana, também ela com problemas mentais, rapariga que se tornou a sua obsessão.

Em nenhum ponto da história o Miguel ou outro deficiente mental é caracterizado como sendo um coitadinho - pelo contrário, a igualidade com que o irmão o trata é bem capaz de chocar algumas pessoas e já vi leitores a criticar esse tratamento. Mas se por vezes dizemos o que tem de ser dito aos nossos amigos, irmãos, pais, colegas, mesmo que isso os magoe, não há razão para envergarmos uma máscara de filtos no tratamento para com os deficientes. Acho que eles o merecem - ser tratados com qualquer outra pessoa, mesmo que a paciência e a compressão tenham de ser a dobrar.

A relação entre os dois irmãos não é perfeita - longe disso - mas talvez por isso seja revestida de uma realidade que nos aumenta a crença. Juntos vão passar por muito, mesmo que isso signifique pouco para o Miguel em dadas circunstâncias e dada a sua obsessão por Luciana, numa viagem turbulenta, nada pacífica, mas cheia de amor.

Li o livro sem saber nada sobre o seu autor. Depois, descobri que foi vencedor do prémio Leya em 2014, por unanimidade. Afonso Reis Cabral tinha apenas 24 anos e foi o seu primeiro romance. É obra. Nunca adivinhei, pela maturidade da escrita e pela sua visão e modo de ver as coisas, a sua tenra idade. O rapaz é trineto de Eça de Queiroz, e talvez lhe corra algo nas veias. Adorei, foi a minha primeira grande descoberta do ano, e aconselho a todos.

O Meu Irmão
De: Afonso Reis Cabral
Ano: 2014
Editora: Leya
Páginas: 368

A nossa pontuação: ★★★★★
Disponível no site Wook.
Com a colaboração de escolas por toda a Europa, incluindo Portugal, foi construído este mapa literário com ilustrações dos melhores (ou mais representativos) livros infantis de cada país.

Em representação de Portugal, o escolhido foi Fada Oriana, de Sophia de Mello Breyner Andresen.

O resultado é fantástico, e fica a vénia pelo estímulo à leitura aos mais novos. O projecto incluiu também um mapa com a palavra "livro" traduzida nas várias línguas, e outras ilustrações que apelam à unidade e à magia de ler. Podem vê-las aqui.



Este livro fala sobre eventos que ocorreram na década de 80 na Coreia do Sul. Perante o fecho de universidades num regime que reduzia ao máximo a liberdade de expressão, os estudantes foram para as ruas manifestar-se. Em Gwangju as coisas saíram do controlo, e tanto os estudantes como a restante população que se lhes juntou foram gravemente reprimidos, mortos em plena via pública, onde os cadáveres depressa se amontoaram e as ruas se transformaram num cenário de guerra.

Os que escaparam da morte ou ficaram gravemente feridos, ou foram presos e posteriormente torturados, ou foram perseguidos, naquele que ficou conhecido como o Massacre de Gwangju. Mais manifestações se seguiram, mais repressão, mais indignação, mais medo, mais mortes, e ainda hoje o número de mortes não está contabilizado.

A autora centrou-se em Dong-ho, uma vítima real desses eventos. Ele vê o seu melhor amigo morrer na primeira manifestação. Ao procurar o seu cadáver num dos locais onde foram amontoados para identificação por parte das famílias, conhece pessoas motivadas a mudar o rumo das coisas e dispostas a morrer em prol da liberdade. Junto delas, vai explorar o seu íntimo e sentir coisas que nunca sentiu ao ver os corpos e a ajudar aquelas famílias e amigos que não compreendem as mortes e que sentem medo e têm dúvidas sem resposta.

Dong-ho morre (não é um spoiler, sabemo-lo logo), sendo mais uma vítima da brutalidade de Gwangju. Os capítulos estão muitíssimo bem estruturados, cada um centrado numa pessoa e numa época. No entanto, todos se cruzam com Dong-ho, e essa mestria no cruzamento das histórias contadas por várias pessoas é a melhor parte do livro. Os meus capítulos preferidos são dois: o que é contado na perspectiva do amigo morto de Dong-ho, em que a sua alma relata o horror dos corpos empilhados à sua volta, no seio da putrefacção e do caos das almas em dúvida; e o contado pela voz da mãe de Dong-ho, que dá voltas e voltas à cabeça mas que acaba sempre por se culpar pela sua morte, sem no entanto lhe encontrar qualquer justificação, ao mesmo tempo que vê a família desmoronar.

É um livro cru que relata eventos macabros e que são uma mancha negra na História. Para mim, peca por, em algumas partes, ser um bocado frio. Também me perdi um pouco em alguns dos capítulos. Demorei um tempo a perceber qual era o envolvimento com Dong-ho, e por isso a minha leitura não foi fluída, mas antes um pouco preocupada em apanhar o fio à meada. Também achei falta de um capítulo dedicado àqueles que estavam do outro lado, mas que não tinham qualquer alternativa. São mencionados brevemente no fim do livro, mas senti a necessidade de também saber mais sobre eles - os homens obrigados a matar, a bater, os que se recusaram e sofreram das mesmas consequências.

Não deixa de ser um óptimo livro que, embora com alguma ficção à mistura, é um relato histórico fantástico e chocante.

Atos Humanos
De: Han Kang
Ano: 2014
Editora: Dom Quixote
Páginas: 232

A nossa pontuação: ★★★☆☆
Disponível no site Wook.
Lisboa respira cultura e foi poiso de alguns dos mais importantes escritores lusitanos. Em fevereiro vão existir passeios literários pela cidade que são uma celebração da herança que eles nos deixaram e uma lembrança dos seus caminhos.

Dia 9 será celebrado José Saramago com um passeio que começa no Largo São Domingos e que termina na Casa dos Bicos. Nos dias 10 e 27 a atenção vai para Fernando Pessoa num percurso que vai desde o Largo de São Carlos até ao Martinho da Arcada. A figura central do dia 23 é Camões, num passeio que vai desde o Largo de Camões ao Pátio do Tijolo.

Prometem-se muitas curiosidades e aprendizagem, nesta ideia que é uma viagem fantástica pela nossa cultura. Aproveite e inscreva-se através do email lisboa.cultural@cm-lisboa.pt.
Mais no site da Timeout.