A Caverna - José Saramago

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Cipriano Algor é oleiro, certamente um dos últimos. Naquela olaria na periferia do Centro, quatro gerações transformaram o barro com as suas próprias mãos, com os métodos mais arcaicos e que já não se usam. Marta é a sua filha e Marçal, o genro. Vivem os três na casa junto à olaria, onde não há luxos mas há lufadas de ar livre, uma amoreira-preta e uma vida calma e honesta.

O já referido Centro é difícil de definir. O leitor vai tendo cada vez mais lamirés sobre o mesmo e vai construindo a sua ideia. É como se fosse uma cidade dentro de uma cidade, onde o betão cresce para os lados, para cima e para baixo de chão. É um local que oferece tudo o que existe no mundo e que tem toda a tecnologia do universo. O Centro vai crescendo e absorvendo as pessoas, o comércio e os serviços, até que fora dos seus muros nada floresça. Muitas pessoas anseiam pela modernidade do Centro e pela possibilidade de lá viver. Mas não Cipriano. Cipriano quer continuar a viver do que as suas mãos produzem na lama vermelha. Só de pensar naquelas gaiolas a que chamam casa, onde é proibido abrir janelas para se manter a temperatura e a humidade, fica doente. No entanto, o seu genro, segurança no Centro, está na eminência de ser promovido e terão de se mudar para lá quando isso acontecer.

Antes disso, o oleiro vê a sua vida a andar para trás quando o departamento de compras do Centro lhe comunica que os clientes já não estão interessados nas suas peças. As encomendas são canceladas e o homem que só sabe viver do barro vê-se a bater com a cabeça nas paredes e sem propósito. No entanto, a vida ainda lhe trará muitos altos e baixos apesar dos seus já 60 e tal anos de idade. Entre elas, o aparecimento de um cão errante na sua propriedade, que baptizou de Achado; e a viúva Isaura Estudiosa. O primeiro vai dar-lhe companhia e alegrias; e vai desejar muito que a segunda lhe dê companhia e alegrias. Embora, como um homem do antigamente, não verbalize nada do que lhe vai passeando no interior.

A sua filha Marta tem uma ideia que pretende tanto elevar a moral do pai como a sua própria, e um novo projecto vai ocupar-lhes as mãos e o espírito, ambos carentes. E assim vamos acompanhando os Algores, o Achado, Marçal e Isaura, algumas das melhores personagens que já tive o prazer de conhecer.

Adoro Saramago, simplesmente adoro. Ainda não tinha lido A Caverna, mas enquadra-se perfeitamente no seu estilo. Mas parece que, dada a simplicidade destas gentes, dos seus actos, das suas palavras parcas mas sempre cheias de segundos, terceiros e quartos significados, a sua escrita ganha asas ainda maiores, atinge-nos o coração, fala-nos directamente cá para dentro, imprime-nos uma marca que não passará.

A história é simples e apesar de falar de um futuro (ou de um presente, ou passado) distópico, é óbvio de que se trata de cada um de nós, da maneira como a humanidade mudou e para onde vai; da complicação que nós próprios provocamos e do nosso afastamento das raízes; do querer ser mais e ter mais quando precisamos de muito pouco para ser felizes. Juntando tudo isto à mestria do autor, temos um tocante romance que, inevitavelmente, oferece um tipo de melancolia rara, que nos atinge de forma irrevogável.

A mim, atingiu-me como um trovão. Sendo proveniente da terrinha, onde os meus avós viviam do que faziam com as mãos (e onde muita gente o faz ainda), consegui sentir na pele e na alma todas as palavras. Senti a tristeza destes tempos onde todos compram tudo feito, onde tudo é facilitado e realizado para ser de consumo rápido, onde o ponto A e o ponto B são os objectivos sem que se desfrute do caminho, onde o progresso mata devagarinho a identidade do povo. Sei que não há volta a dar, e essa irreversabilidade, o perder para sempre do talento individual para a sociedade massificada, a perda de importância do que é natural em detrimento do lucro, das regras e de um lugar ao sol artificial, fizeram-me chorar.

Se fosse outro autor a contar esta história, não teria sido tão bom. Não tenho mais adjectivos, do que dizer que é um livro brilhante.

A Caverna
De: José Saramago
Ano: 2000
Editora: Porto Editora
Páginas: 368

A nossa pontuação: ★★★★★
Disponível no site Wook.

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